Alimento

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Gosto muito da Hilda Hilst, é, sem titubeios, minha escritora favorita. Não só pela vastidão de sua obra, mas por ter ciência de que quando era ela mesma, era uma 'tábua etrusca', mas por saber, de alguma maneira, desmitificar-se e fazer entender-se, quisera eu ter esse dom. Muita coisa dela ainda me é difícil de digerir, é substância demais para tão pouco ser, mas creio um dia chegar lá, enquanto isso, continuo sendo alimentada pelos que entendo. Abaixo o trecho de um deles. Deliciem-se.

Cansei-me de leituras, conceitos e dados. De ser austera e triste como conseqüência. Cansei-me de ver frivolidades levadas a sério e crueldades inimagináveis tratadas com irrelevância, admiração ou absoluto desprezo. Sou velha e rica. Chamo-se Leocádia. Resolvi beber e berimbar antes de desaparecer na terra, ou no fogo ou na imundície ou no nada. Contratei uma secretária-acompanhante e disse-lhe o seguinte: és jovem e apetitosa. Quando os homens quiserem ter relações contigo, diga-lhes que façam um esforço e deitem-se comigo. Pagarei muitíssimo bem a cada um deles e terás régias comissões a cada êxito.
Ficou perplexa. Olhou-me a figura ainda esguia, mas bastante deteriorada, pediu-me que levantasse a saia, levantei, olhou aturdida minhas coxas murchas. Senhora, retrucou, será muito difícil convencê-los, mas portar-me-ei, desculpe a mesóclise...E saiu correndo em direção ao banheiro. Na volta, explicou-me que havia sido professora e sempre tinha pequenas náuseas quando usava a mesóclise, mas diante de um assunto tão repugnante (no seu entender) e acrescido de mesóclise, teve de vomitar mesmo. Estava vermelha e lacrimosa, mas bastante ativa. Continuou: hei de portar-me indignamente para satisfazê-la, desde que meu salário seja compatível com tamanha velhacaria. Disse a quantia. Ficou radiante. Chama-se Joyce (!). É mignon e deliciosa, peitinhos de adolescente, tem 30 mas dá-se-lhe 20 (eu não tenho medo da mesóclise), a boca de cantinhos levantados, os olhos claros entre o amarelo e o castanho, os cabelos quase ruivos, elegante no olhar e na postura. Perguntou-me de chofre, ao anoitecer, diante do meu primeiro uísque (aprendi que qulaquer bebida é menos fatal se se começa a beber a partir das seis da tarde) se eu conhecia Chesterton. Não acreditei no que ouvia. Seria algum Chesterton amiguinho dela? Um professor? Algum político? Não senhora, refiro-me a Gilbert Keith Chesterton, novelista, ensaísta, crítico e humorista inglês. Meu Deus!, exclamei eu, que deixei de pensar pra continuar a viver, me encontro diante de alguém que leu Chesterton. Por favor, Joyce, previno-a, e previno-a com uma frase do citado: “se a tua cabeça te ofende, corta-a fora”.
Foi o que aconteceu com a minha, porque para mim depois de todas as reflexões sobre a sordidez, a ignomínia, a canalhice da humanidade, prefiro esquecer que um Chesterton existiu.

Hilda Hilst - Bestera

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